BELOS E
MORTÍFEROS NUDIBRÂNQUIOS
Hopkinsia
rosacea
O esplendor
destes seres hipnotiza. Mas, para os inimigos, estes predadores vorazes dispõem
de um fabuloso arsenal de ácidos e venenos, retirados dos próprios adversários.
Parecem
invenções de crianças talentosas ou exercícios de imaginação. Com suas cores
quase brilhantes, apresentam tal profusão de saliências onduladas, órgãos
sensitivos e florestas de "dedos" sinuosos que é difícil distinguir
qual lado é qual. Lindos, delicados, de aspecto inofensivo, são os equivalentes
subaquáticos das borboletas. Mas também são animais, sobrevivendo no mundo do
coma-ou-seja comido, às vezes presas, às vezes predadores. Mais ainda, fizeram
uma aposta no jogo da evolução, abrindo mão do abrigo que sempre protegeu os
animais de seu tipo, e parecem ter vencido com folga. Os nudibrânquios
filigranados são lesmas-do-mar, fotografados sob a água não como modelos
bonitos, mas como seres vivos empenhados na luta pela sobrevivência. Foram
observados defendendo-se, atacando, comendo, escondendo-se, batendo em
retirada, picando, nadando. Todos são carnívoros, pelo menos até onde se sabe,
predadores vorazes e de movimentos lentos que se alimentam de presas ainda mais
vagarosas ou imóveis. Pertencendo à subclasse dos moluscos conhecidos como
opistobrânquios, seus integrantes mais numerosos e conhecidos são os
nudibrânquios (literalmente, guelras ou brânquias nuas; na maioria das
espécies, as plumas das guelras ficam na parte externa do corpo).
Todas as
lesmas-do-mar têm uma língua áspera chamada rádula; possuem também um
"pé" carnudo que as propele para a frente, seja através de contrações
musculares, seja pelo movimento concatenado dos pêlos localizados na parte
inferior do pé. A subespécie dos nudibrânquios que compõe a grande maioria da
subclasse, exibe na cabeça um par de órgãos sensores. Em linhas gerais, os
nudibrânquios são caramujos, com uma diferença: eles abriram mão da proteção da
concha no seu estágio adulto. No lugar dela, recorrem a um vasto arsenal de
defesa para proteger seus corpos macios num oceano cheio de predadores esfomeados.
A ausência da concha torna-os mais ágeis. Por isso, embora a maioria dos
nudibrânquios ainda rasteje no fundo do mar, muitos são capazes de nadar, ao
menos o suficiente para procurar um parceiro ou fugir de algum predador. Mesmo
sem a concha para dificultar seus movimentos, a maior parte dos nudibrânquios
não usa a fuga como principal meio de defesa. Ao contrário, permanecem no chão,
apostando suas vidas no êxito da camuflagem ou da guerra química.Cores vivas
podem ser úteis para advertir predadores de que as pretendidas presas são
nocivas ou mesmo tóxicas; as cores são úteis também para o animal se esconder:
um nudibrânquio vermelho-vivo "desaparece" quando estacionado sobre
uma esponja do mar da mesma cor. O nudibrânquio freqüentemente adquire a cor do
alimento que costuma consumir. A dieta da espécie vermelha, por exemplo, é a
esponja do mar vermelha. O rosa-brilhante do Hopkinsia rosacea um nudibrânquio
da costa do Pacífico, resulta de um pigmento carotenóide específico, a
hopkinsiaxantina; esse pigmento só é encontrado no biozoário Eurystomella
bilabiata, que, por coincidência, é o alimento daquele nudibrânquio. A guerra
química é a arma escolhida por muitos nudibrânquios para se defenderem. Alguns
segregam ácidos, e estes causam sensações que muitos peixes, mas nem todos,
acham extremamente desagradáveis. Outros produzem toxinas, algumas delas tão
poderosas que um único nudibrânquio colocado num balde com peixes ou
caranguejos pode matá-los em cerca de uma hora (em circunstâncias normais, o inimigo
recebe uma dose pequena, suficiente para repeli-lo mas não para matá-lo).
Um grupo de
nudibrânquios conhecidos como eolídeos utiliza as armas de suas próprias
vitimas. Eles se alimentam de outra categoria de invertebrados marinhos, os
celenterados, especialmente hidróides e anêmonas-do-mar. Estas últimas, por sua
vez, têm uma característica comum aos celenterados: a produção de nematocistos,
pequenas cápsulas que podem disparar um filamento enrolado e oco, semelhante ao
arpão de uma baleeira. O nematocisto fura a pele da vítima e injeta uma toxina
(é assim que as águas-vivas, outro grupo de celenterados, queima banhistas).
Quando um eolídio come um hidróide ou uma anêmona-do-mar, ingere os
nematocistos sem maiores problemas. O sistema digestivo do nudibrânquio
neutraliza os nematocistos maduros, mas envia os imaturos para as bolsas
especiais que possui na ponta dos "dedos", ou ceratos, onde vão se
transformar em verdadeiras armas. Os ceratos são freqüentemente a parte mais
colorida do nudibrânquio podem atrair a atenção do predador, desviando-a da
cabeça ou das regiões vitais do animal.
Um peixe
que morder esses apêndices receberá um bocado de nematocistos, além de algumas
secreções de gosto horrível, e rapidamente perderá o interesse pelo banquete. O
nudibrânquio então rastejará para longe usando seu pé gastrópode e rapidamente
conseguirá regenerar os ceratos perdidos. Alguns nudibrânquios têm a capacidade
desconcertante de romper os ceratos que um predador houver abocanhado, do mesmo
modo que alguns lagartos deixam a cauda com o predador enquanto escapam. Das
cerca de 3 mil espécies de opistobrânquios conhecidos, aproximadamente 2500 são
nudibrânquios. Destes, as lesmas-do-mar são encontradas em todos os oceanos,
das regiões polares aos trópicos, e em virtualmente todo tipo de hábitat. Elas
variam em tamanho, desde espécimes pequenos o suficiente para rastejar entre
grãos de areia até a lebre-do-mar, um dos maiores gastrópodes do mundo, que
pode chegar a 1 metro e pesar 66 quilos.
Apesar
desse sucesso evolutivo e de seu arsenal de defesas, os nudibrânquios não levam
uma vida despreocupada. Já foram vistos caranguejos arrancando os ceratos de
eolídeos antes de devorá-los. E alguns opistobrânquios preferem consumir os
seus iguais. De qualquer forma, um mecanismo de defesa pode ser considerado um
sucesso mesmo quando o nudibrânquio que o utiliza é morto: se a refeição tiver
um sabor amargo para o vencedor, ele evitará nudibrânquios no futuro. Então, a
espécie inteira sai ganhando. Mas há mais coisas na vida, é claro, do que
tentar saber quem está devorando quem, até mesmo para os gastrópodes
subaquáticos sem concha. E não é surpreendente que essas criaturas fantasiadas
de cores alegres tenham desenvolvido formas interessantes de lidar com esse
desafio universal. Todos os opistobrânquios são hermafroditas; cada indivíduo
possui órgãos reprodutores dos dois sexos. Qualquer membro de determinada
espécie pode acasalar-se com outro.
Na maior
parte dos casos, dois nudibrânquios se colocam em direções opostas, de tal modo
que o lado direito de um se une com o do outro, e trocam esperma; assim, ambos
são fertilizados. Grupos de lebres-do-mar formam longas correntes de
acasalamento, em que cada animal faz o papel de macho para o que está a frente
e o de fêmea para o que está atrás. O Onchidoris bilamellata, o nudibrânquio
que se alimenta de craca, já foi visto algumas vezes congregado aos milhares,
em grandes grupos de acasalamento. Os ovos são postos em massas gelatinosas,
que se grudam a alguma superfície dura. Os ovos da maioria dos nudibrânquios
dão origem a larvas que já nascem nadando, movendo-se com outros plânctons e
dispersando-se ao longo da costa. Nesse estágio, exibem a concha característica
de sua classe. Mas depois de um período variável descem ao fundo do mar,
pousando muitas vezes diretamente sobre um indivíduo de cuja espécie eles irão
se alimentar quando adultos. Eles se transformam em adolescentes, já sem a
concha, e finalmente em adultos. Existem muitas coisas não sabidas sobre os
nudibrânquios incluindo o que alguns comem. Eles são difíceis de estudar porque
tendem a ser transitórios; ao contrário da maioria dos invertebrados marinhos,
não se pode contar com sua presença quando se precisa deles. Biólogos começaram
recentemente a estudar o papel dos nudibrânquios em relação a outras espécies.
Eles não são propriamente dominantes em determinada área, ao que parece, mas
pelo menos em alguns casos influenciam que outros organismos dominem ou não. Um
nudibrânquio encontrado ao longo das costas de todo o hemisfério norte, chamado
em inglês shaggy rug (tapete peludo,
desgrenhado), alimenta-se de anêmonas-do-mar, especialmente de uma de vida
longa que pode dominar uma área considerável ao competir com sucesso com outros
organismos sésseis (seres que, não tendo suporte próprio, se
"enraízam" em outros organismos, como cracas e ostras).
Onchidoris
bilamellata
Tanto
estudos de laboratório como pesquisas de campo sugerem que a predação exercida
pelo nudibrânquio impede o monopólio da anêmona-do-mar e deixa espaço para
outras espécies se desenvolverem, aumentando assim a diferenciação da
comunidade. O grande número de nudibrânquios que se alimentam de esponjas pode
ter um impacto similar na costa do Pacífico, onde estes organismos são
potencialmente dominantes. Os nudibrânquios são mais do que belas curiosidades
biológicas. Os humanos, como sempre, já acharam utilidade para eles. Poucos são
comestíveis; só um, o tochni tem servido de alimento regular para os índios
aleútes e para os habitantes das Ilhas Kurilas, na União Soviética. Outros
nudibrânquios especialmente as lebres-do-mar, são usados na medicina chinesa.
Os opistobrânquios têm um valor maior nas pesquisas neurofisiológicas. Como a
fabulosa lula, que revelou tantas coisas aos pesquisadores, alguns têm células
nervosas imensas: quase 1 milímetro de diâmetro no caso da lebre-do-mar da
Califórnia.
Os
neurônios não são apenas grandes: são tão constantes em sua posição e coloração
que células correspondentes podem ser facilmente localizadas em outros
indivíduos. Os fisiologistas podem assim ter certeza do que estão descobrindo,
especialmente à medida que fazem a conexão entre nervos específicos e ações
complexas do corpo. Por esse motivo, uma das espécies foi coletada tão
intensivamente que, em alguns lugares, poucos adultos podem ainda ser
encontrados. Ao fim e ao cabo, no entanto, não são nem os avanços neurológicos
nem a promessa de uma compreensão ecológica melhor que tornam esses pequenos
moluscos facilmente reconhecidos por biólogos e mergulhadores. Eles são tão coloridos
e suas formas tão maravilhosamente improváveis que nem é preciso perguntar para
que servem.
REVISTA
SUPER INTERESSANTE 029, FEVEREIRO 1990